terça-feira, 16 de setembro de 2008

O TABU DA FOME


A história da humanidade tem sido, desde o princípio, a história de sua luta pela obtenção do pão nossa de cada dia. Parece, pois, difícil explicar e ainda mais difícil compreender o fato singular de que o homem – este animal pretensiosamente superior, que tantas batalhas venceu contra as forças da natureza, que acabou por se proclamar seu mestre e senhor – não tenha até agora obtido uma vitória decisiva nesta luta por sua própria subsistência. Basta ver que, depois deste longo período de algumas centenas de milhares de anos de batalha, hoje se verifica, sob critério de observação científica, que cerca de dois terços da população do mundo (em 1946) vivem num estado permanente de fome; que cerca de um milhão e meio de seres humanos não encontram recursos para escapar às guerras da mais terrível de todas as calamidades sociais.
Será a calamidade da fome um fenômeno natural, inerente à própria vida, uma contingência irremovível como a morte? Ou será a fome uma praga social criada pelo próprio homem? Eis o delicado e perigoso assunto debatido. Assunto tão delicado e perigoso por suas implicações políticas e sociais que até quase aos nossos dias permaneceu como um dos tabus da nossa civilização – uma espécie de tema proibido ou, pelo menos, pouco aconselhável para ser abordado publicamente.
Assim, tornou-se a fome qualquer coisa de vergonhosa como o sexo. Qualquer coisa de impuro e escabroso e, portanto, indigna de ser tocada – um tabu.
[...]
O fato surpreende ainda mais quanto comparamos o caso da fome com o das outras calamidades que costumam assolar o mundo – as guerras e as epidemias, por exemplo – e verificamos como a menos estudada e debatida a menos conhecida em suas cousas e efeitos, é exatamente a fome. Para cada estudo sobre os problemas da fome aparecem mais de mil publicações acerca dos problemas da guerra. No entanto, o desgaste humano produzido pela fome é bem maior do que o das guerras e das epidemias em conjunto. Estragos mais extensos em número de vítimas e tremendamente mais graves em suas conseqüências biológicas e sociais.
Já Waser, no século XIX, tinha chamado a atenção para o fato de que as perdas de vidas causadas pela peste ou pela guerra costumam ser reparadas num prazo médio de dez anos, enquanto, em seguida às grandes fomes, os sobreviventes permanecem destroçados pelo resto de suas vidas. Finalmente, para dissipar quaisquer dúvidas e tornar indiscutível o primado da destruição pela fome, basta que se ponha em relevo o fato, de observação universal, de que ela constitui a mais efetiva causa das guerras e o mais propício preparo do terreno para a eclosão das grandes epidemias.
É, pois, a fome, indiscutivelmente, a mais fecunda matriz de calamidade e dela, no entanto, a nossa civilização sempre procurou desviar a vista, com medo de enfrentar sua triste realidade.
Josué de Castro. Geopolítica da fome, 7. ed. São Paulo, Brasiliense, 1965.

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